Lição 10: estudos culturais no Brasil

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Maria Elisa Cevasco
Universidade de São Paulo


Este artigo trata do estabelecimento dos estudos culturais no Brasil. Reconhece o papel fundacional da Universidade de São Paulo e de Paulo Emilio Salles Gomes, Antonio Candido, Roberto Schwarz e seus contemporaneos. Propõe que os estudos culturais no Brasil devem dar uma volta histórica, para uma ótica materialista. Outra maneira com que se pode dar desenvolvimento à nova disciplina no Brasil é através da busca de pontos de convergência substantivos entre a crítica cultural brasileira e os parâmetros dos estudos culturais tais como se constituíram na Grã-Bretanha. Não se trata de um estudo de influências, mas de encontrar as semelhanças entre projetos e formações comparáveis. Assim é possível pensar a formação dos estudos culturais britânicos em relação “diversa mas não alheia” com um projeto de crítica cultural brasileira e a partir daí se pensar uma construção de estudos culturais no Brasil.

Palavras chave: estudos culturais, Paulo Emilio Salles Gomes, Antonio Candido, Roberto Schwarz, materialismo



Como muitos outros países, o Brasil teve formas de estudos culturais bem antes da disciplina se transformar em mais uma grife acadêmica a ser exportada pelo mundo anglo-saxão. Mas a data oficial de seu reconhecimento institucional no país pode ser 1998, ano em que a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) que reúne professores e pesquisadores da área, escolheu como tema para seu congresso bi-anual “Literatura Comparada=Estudos Culturais?”.

Explicando à revista Cult as questões subjacentes ao interesse de uma associação de literatura pelos estudos culturais, o presidente da associação, o crítico cultural e professor da Universidade Federal de Santa Catarina Raúl Antelo, retoma, em outra chave, alguns dos termos do debate como descrito aqui.

Segundo Antelo, no “horizonte dos estudos literários atuais convivem duas tendências principais (pela sua força ideológica): para evitar a fácil oposição entre progressistas e retrógrados (que a esta altura da história esclarece pouca coisa), empregarei as locuções ‘politeístas literários’ e ‘monoteístas literários’. Os primeiros lêem e produzem a literatura (hoje, no ensaio crítico, o crítico se revela também escritor) a partir de parâmetros diversificados, geralmente locais, étnicos, políticos (eles não fingem ignorar o fato de que no Brasil, por exemplo, além do português são falados o iorubá e 180 idiomas indígenas); os segundos aferram-se ainda a um critério único, considerado talvez atemporal, eterno, absoluto”.

Certamente é para críticos politeístas que os estudos culturais interessam como uma forma de ler que se opõe à dos monoteístas, fixados em uma Literatura “atemporal, eterna e absoluta” e portanto dissociada do social. Por este ângulo, é a abordagem multidisciplinar e diversificada da nova disciplina que conta. Mas como vimos nas lições anteriores, a linha d’água que diferencia os estudos culturais é seu projeto político, seu impulso claro de fazer ligações com a realidade social e diferença na prática cultural (Cevasco, Dez lições). Os modos como se definem esta política são diversos e infletidos por seu momento histórico. Assim, a posição política dos estudos culturais da ótica apresentada no discurso de abertura do congresso é uma política na chave do possível e do impossível, a política de tempos que não acreditam em metas transcendentes:

Conquanto estejamos num congresso que articula a literatura a instâncias ético-políticas, as dos estudos culturais, é bom frisar que para a atual gestão da Abralic, o ético-político não é um momento instituinte do social. Admitimos, com efeito, uma evidente expansão do político às custas do social, porém admitimos também que essa politização, na medida em que implica a produção contingente do vínculo social, aponta sempre para um descentramento da sociedade em relação a si própria, donde aquilo que torna possível a literatura e a política (a autonomia e contingência dos atos de instituição) é aquilo mesmo que os torna, simultaneamente, impossíveis.

É evidente que definir uma possibilidade em termos de sua impossibilidade constitui heresia heterodoxa para toda perspectiva transcendentalista, mas o fato é que o ato institucional falta sempre em seu lugar e é essa característica de indecidibilidade que legitima o caráter democrático infinito. (Antelo 48)

O esforço dessa fala e do modo de organização do congresso, que incluía a presença de pensadores anglo-saxões e de muitos praticantes da crítica cultural latino-americana em geral, como a argentina Beatriz Sarlo, e da brasileira, como Roberto Schwarz, dão uma pista por onde pode correr a implantação dos estudos culturais no Brasil: o fito é juntar-se a uma conversação teórica fluente que se desenvolve na academia em diversos lugares do mundo, e adicionar nossas peculiaridades latino-americanas ao coro pluralista que procura mapear um lugar de onde se possa falar em cultura em um mundo globalizado.1

Uma volta histórica
Outra maneira com que se pode dar desenvolvimento à nova disciplina no Brasil é através da busca de pontos de convergência substantivos entre a crítica cultural brasileira e os parâmetros dos estudos culturais tais como se constituíram na Grã-Bretanha. Não se trata de um estudo de influências, mas de encontrar as semelhanças entre projetos e formações comparáveis. Claro que falar de comparações entre culturas de magnitudes tão díspares no cenário mundial obriga a uma explicação. A idéia não é olhar como um projeto cultural de um país central e exportador de idéias e modos é imitado, ou a mesma coisa ao contrário, recusado por ser estrangeiro, em um periférico, mas pensar nos dois países em permanente relação. Essa relação é sem dúvida desigual mas é determinada pelo mesmo sistema preponderante lá como cá. A questão não é imaginar um espaço abstrato “entre” onde os projetos se aproximam, mas, seguindo a formulação esclarecedora de Roberto Schwarz, pensar o espaço nacional como “um espaço com travejamento sociológico diferente, diverso [do dos países centrais] mas não alheio” (Seqüencias 95). Trata-se de um espaço diverso porque resultado de processos históricos diferentes: “a colonização não criava sociedades semelhantes às da metrópole e nem a ulterior divisão internacional do trabalho igualava as nações. Mas um espaço da mesma ordem, porque também ele é comandado pela dinâmica abrangente do capital, cujos desdobramentos lhe dão a regra e definem a pauta” (Seqüencias 95).

Assim é possível pensar a formação dos estudos culturais britânicos em relação “diversa mas não alheia” com um projeto de crítica cultural brasileira e a partir daí se pensar uma construção de estudos culturais no Brasil. Uma tradição brasileira de crítica cultural que converge com a formação dos estudos culturais como descrita aqui é a que se formou em torno da Universidade de São Paulo em duas gerações consecutivas.

Como se sabe, essa universidade foi fundada em 1934, não como a Workers’ Educational Association para ensinar trabalhadores, mas como um projeto de elite: dotar a cidade que crescia de mais um melhoramento moderno. No entanto, foi lá que se formou uma tradição que Antonio Candido, a figura central da crítica literária brasileira, chamou de “radicalismo modesto”. Um dos primeiros sinais de que havia aí uma nova estrutura de sentimento, foi o lançamento de Clima. O grupo de jovens que editaram os dezesseis números da revista entre 1941 e 1944 buscavam na crítica cultural não a conservação de valores “atemporais, eternos e absolutos”, mas descobrir e interpretar a realidade nacional em processo de acelerada industrialização. Como os proponentes dos estudos culturais, os jovens intelectuais de Clima não separavam arte de sociedade. A estrela política do grupo era Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977). Ligado ao partido Comunista na juventude, vai desenvolvendo uma postura cada vez mais claramente anti-stalinista, de um socialismo independente conservando, o mesmo que vimos ocorrer com os membros da New Left, sua adesão a um marxismo despido de dogmatismos. Como para os jovens que fundaram o movimento britânico, falta à formação brasileira de uma Nova Esquerda de intelectuais anti-normativos o conhecimento de autores marxistas em quem pudessem se inspirar na empreitada. Segundo lembra Antonio Candido, aqui também faltavam fontes de inspiração: “Não se conheciam os escritos que orientariam gerações futuras em um enfoque mais livre do marxismo, como os de Gramsci, Korsh, Bloch; não havia escola de Frankfurt [Adorno, Benjamin, Marcuse, entre outros] e nem New Left Review” (Vários Escritos 344).

 Não obstante essa falta, tanto Paulo Emilio como Antonio Candido, ambos participantes de Clima, lograram desenvolver uma posição de esquerda independente, que é clara no engajamento social de suas análises respectivas de cinema e literatura e também na sua atuação política. Após militarem em grupos pequenos e exclusivos chegaram à fundação de um pequeno partido, a União Democrática Socialista (1945). Esta ajudou a formar a Esquerda Democrática (1946) que se dissolveu no Partido Socialista Brasileiro (1947). Antonio Candido, um dos redatores das teses do partido, lembra como a tese 7 enfeixa uma atitude anti-stalinista e pró-proletariado que, como vimos, também embasa posições como as de Raymond Williams e E.P. Thompson:

Na sua crítica ao Partido Comunista, o partido Socialista distingue a massa proletária da elite dirigente. Esta, cegamente obediente às fórmulas russas; aquela em grande parte caracterizada por uma admirável consciência de classe e denotadora de vocação, de uma intrepidez política socialista capaz de servir de base às conquistas mais fundamentais do socialismo. E é esta circunstância que nos torna mais confiantes no futuro das lutas sociais no Brasil. (Vários Escritos 23)

Basta comparar essa tese com a profissão de fé na classe trabalhadora e não em partidos que a queiram liderar feita por Williams em uma retrospectiva sobre sua posição política para que se percebam as afinidades entre as essas duas formações de esquerda:

Assim, se me pedissem para definir minha posição, eu diria o seguinte: acredito na luta econômica necessária da classe trabalhadora organizada. Acredito que este é o meio primordial de luta política assim como ainda é a atividade mais criativa de nossa sociedade, como indiquei há muitos anos atrás, ao chamar as grandes instituições da classe trabalhadora de realizações culturais criativas. Creio que é necessário abandonar uma perspectiva parlamentar não como questão de princípio, mas como uma questão prática - creio que temos que ir além disso. (Vários Escritos 75)

Além de configurar uma posição anti-autoritarismo partidário dentro da luta de esquerda e de articular um modo próprio de se fazer crítica cultural, essa geração de Clima tem ainda outra afinidade com os membros da primeira New Left, a de dar mais um passo decisivo em relação à tradição que os tornou possíveis. Vimos que a formação dos estudos culturais dependeu da existência de uma tradição de aferição da qualidade da vida social através da crítica da cultura que Williams configurou em seu primeiro grande livro, Culture and Society (1780-1950). De modo similar, a crítica da sociedade através da cultura, marca da formação brasileira e da britânica, foi possível no caso da primeira pela existência de uma tradição brasileira de cultura e sociedade. Como lembra Candido, sua geração aprendeu a “refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo ... em função de três livros” (Teresina 123). Estes são Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre (1900-1987), o vasto tratado das relações inter-raciais no país da mestiçagem, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), uma leitura progressista da cultura brasileira estruturada a partir de uma “exemplar interpretação desmistificadora do passado aliada a um senso democrático do presente” (Candido, Vários Escritos 328). O terceiro livro é Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de Caio Prado Júnior. Escrito de uma perspectiva claramente marxista, representa um resultado intelectual dessa formação de uma nova esquerda não-dogmática. Na explicação sempre clara e segura de Candido, esta obra trazia “como linha interpretativa o materialismo histórico, que estava sendo em nosso meio uma alavanca extraordinária de renovação intelectual e política. Nesse livro ele aparecia pela primeira vez como instrumento de captação e ordenação do real e não como recurso partidário com finalidade prática imediata” (Teresina 125).

Essa geração anterior à de Candido teve o mérito de desmistificar a retórica liberal e apontar novos caminhos para se pensar a mudança social no Brasil. Do ponto de vista das realizações intelectuais que pensavam esta mudança, o livro de Caio Prado marca o começo de uma tradição de grandes livros sobre formações onde se procura entender o presente como estruturado a partir dos processos históricos peculiares ao desenvolvimento de um país periférico. Entre esses livros destacam-se a Formação Econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado (1920-), e um livro decisivo para o entendimento do funcionamento da cultura no Brasil, o Formação da Literatura Brasileira (1959) do próprio Candido. Ao estudar como a literatura brasileira se formou como um sistema orgânico de autores-público-obra em resposta à “história do desejo dos brasileiros de terem uma literatura” Candido transpôs para um estudo interno de obras literárias o problema externo da formação, central em uma nação periférica –sempre em dificuldade de alcançar a norma européia e hoje norte-americana de país “formado”, e sempre atrasado na função de lutar contra a desigualdade social que lhe rouba organicidade e o condena a ser sempre um país para o futuro.

Na exposição de Candido nos dois volumes da Formação já fica evidente uma de suas contribuições mais duradouras para a análise de obras literárias: longe de tratar as obras como veículos para valores universais ou atemporais, ele demonstra que são uma forma de estruturar uma relação dialética entre o interno e o externo, ou, para usarmos a expressão de Williams e ressaltar mais uma semelhança, entre projeto e formação sócio-histórica, entre arte e sociedade. Uma das contribuições teóricas mais produtivas da geração de Clima foi essa demonstração de que os projetos culturais são estruturados por um conteúdo histórico-social. Como na Grã-Bretanha, o interesse pela cultura de jovens politizados mas não dogmáticos acaba mudando a maneira de se fazer análise cultural, inaugurando um novo modo de ler os produtos culturais, modo que faz da crítica uma atividade que leva a um conhecimento mais apurado da realidade social que é o objetivo político mudar. Tanto as análises literárias de Candido como as de cinema de Paulo Emilio são exemplos de como essa maneira de ler, que também, caracteriza a tradição mais relevante dos estudos culturais, tem um poderoso aspecto cognitivo o que, por conseqüência, amplia a possibilidade crítica. Esse modo de apresentar a realidade socio-histórica como estruturada na forma de produtos culturais estabeleceu um ponto de vista a partir do qual a geração seguinte pode se aproximar das peculiaridades do Brasil.

Essa geração, como a da New Left, vai formar uma “República das Letras” que tem poucos paralelos na história intelectual do país. De cunho claramente marxista, foi formada, de novo, em torno da Universidade de São Paulo. O grupo que iria escrever as mais instigantes obras de interpretação da realidade nacional surgiu de uma iniciativa entre estudantes e jovens assistentes. O projeto era rigorosamente simétrico ao da New Left. Aqui como lá a questão central era voltar a Marx como forma de se afastar da burocratização cada vez mais evidente da União Soviética.

Mais informal do que o grupo britânico, o de jovens assistentes da USP se reunia fora da universidade, cada vez na casa de um membro. Segundo narra um de seus membros mais destacados, o crítico cultural Roberto Schwarz, o objetivo primeiro era ler O Capital das diferentes perspectivas franqueadas pelas disciplinas representadas no grupo: crítica cultural, com o próprio Roberto Schwarz, ainda estudante de ciências sociais em 1958 quando começou o seminário; economia com Paul Singer; filosofia com José Arthur Giannotti; história com Fernando Novais; antropologia com Ruth Cardoso; sociologia com Otavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Dentro dessa variedade, os trabalhos que surgem deste grupo têm um linha comum evidente nas contribuições individuais de seus membros. Segundo Roberto Schwarz:

Os jovens professores tinham pela frente o trabalho de tese e o desafio de formar o bom nome da dialética no terreno da ciência. De modo geral escolheram assunto brasileiro, alinhados com a opção pelos de baixo que era própria à escola onde se desenvolviam pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante, a religião popular. Comentando o deslocamento ideológico dos anos 30 e 40, a que a Faculdade se filiava, Antonio Candido [em Brigada Ligeira e Outros Estudos] apontou a novidade democrática e anti-oligárquica de tal elenco de temas. Este o quadro em que a ruminação intensa de O Capital e do 18 Brumário, ajudada pela leitura dos recém-publicados História e Consciência de Classe, de Luckács, e Questão de Método de Sartre, dois clássicos do marxismo heterodoxo, ira se mostrar produtiva. O fato é que a certa altura despontou no seminário uma idéia que não é exagero chamar de uma intuição nova do Brasil, a qual organizou os principais trabalhos do grupo e teve repercussão considerável. Sumariamente, a novidade consistiu em juntar o que andava separado, ou melhor, articular a peculiaridade sociológica e política do país à história contemporânea do capital, cuja órbita era de outra ordem. (Seqüências 93)

No caso da crítica cultural, que mais de perto interessa à exposição de uma pista possível para o desenvolvimento dos estudos culturais no Brasil, essa dialética entre as peculiaridades do Brasil e a história do capitalismo na sua dinâmica internacional foi explicitada pelo próprio Roberto Schwarz. Sabemos que um tema definidor da cultura brasileira se desenvolve em torno da dualidade nacional/estrangeiro, onde o nacional é sempre, para usar outra fórmula do crítico, por subtração. Paulo Emilio já havia colocado o problema com clareza:

Não somos europeus ou americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. (Schwarz, Seqüências 88)

Vimos que um das providências centrais para o estabelecimento de uma nova forma de fazer crítica, os estudos culturais, foi a revisão do conceito de cultura. Como em Williams, um passo central para a obra de Schwarz foi desatar esse nó da dualidade no debate sobre a cultura nacional, em permanente oscilação entre um falso cosmopolitanismo e um igualmente falso nacionalismo. Ele demonstra que o debate sobre o caráter imitativo da cultura nacional é em si mesmo ideológico: o problema central nunca foi escolher entre imitar o estrangeiro ou defender posições nacionalistas. Esse falso problema dá notícia da distância entre as elites brasileiras e o resto do país: “por sua lógica, o argumento oculta o essencial, pois concentra a crítica na relação entre elite e modelo, quando o ponto decisivo está na segregação dos pobres, excluídos do universo da crítica contemporânea” (Schwarz, Que Horas 47). Como se vê, o próprio foco do conceito de cultura precisa ser redirecionado para que se possa ver como ela funciona em uma sociedade desigual.

Na esteira de Candido de quem foi aluno, Roberto Schwarz demonstra em seus trabalhos críticos a produtividade de um modo de ler dialético, que inclua projeto artístico e formação sócio-histórica. Para ilustrar a produtividade dessa tradição de crítica cultural brasileira com que pode se entroncar uma produção relevante de estudos culturais no Brasil, termino esta exposição com um exemplo de como funciona a prática analítica dessa tradição através de um comentário de um livro de Roberto Schwarz, Duas Meninas.

O efeito do real na crítica cultural
Publicado em 1997, o livro submete à leitura exigente dois exemplos díspares de permanência literária na vida cultural brasileira. Um, a obra de nosso maior escritor, o Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis, e outro o despretensioso diário de uma menina de Diamantina da mesma época, a jovem Helena Morley, coletado em Minha Vida de Menina (1942), objeto de admiração tanto de grandes críticos como do público leitor. Em graus de elaboração obviamente diversos, ambas dão conta de demonstrar os impasses da vida social brasileira às voltas com o legado de iniqüidade social, marcas da colônia e da escravidão, e da natureza profundamente desigual da vida social brasileira.

Não acredito que Schwarz escolhesse apresentar seu livro como exemplo de estudos culturais, mas o fato é que ele demonstra a produtividade crítica de se examinar as relações entre alta-literatura e literatura não-canônica, tema que os estudos culturais colocam em evidência. Para além dessa coincidência temática –fruto de uma disposição comum de ver a realidade social a contrapelo de uma ótica de classe que separa tudo em compartimentos estanques– o estudo de Schwarz realiza as ambições metodológicas mais fundas da nova disciplina. Vimos que demonstrar o poder de revelação das estruturas sociais enfeixadas em produtos culturais e o realinhamento teórico, inclusive em relação ao marxismo ortodoxo, que esse modo de interpretar acarreta são motivações fundadoras dos estudos culturais. O substrato político dessa maneira de ler é justamente a tarefa de se dissipar as névoas com que a ideologia recobre a realidade em seu trabalho incessante de dificultar o entendimento da verdade do funcionamento da sociedade. Entender esse funcionamento é primeiro passo essencial para se poder intervir nessa realidade com um mínimo de eficiência.

Existe ainda, entre o estudo de Schwarz e a vertente do materialismo cultural dos estudos de cultura, uma convergência de concepção da natureza da forma na produção cultural. Vimos que para Williams o decisivo na nova disciplina era que ela se propunha a facultar a percepção da inter-relação projeto/formação, arte/sociedade. Segundo ele, as produções artísticas davam forma às disposições, energias e aos rumos da sociedade possibilitando a sua concretização e apreensão. Tanto Williams quanto Schwarz partem de uma noção materialista –a matriz de ambos é a noção marxista para a qual “os constrangimentos materiais da reprodução da sociedade são ele próprios formas de base, as quais mal ou bem se imprimem nas diferentes áreas da vida espiritual, onde circulam e são re-elaboradas em versão mais ou menos sublimadas ou falseadas, formas portanto trabalhando formas” (Schwarz, Seqüencias 30). Porém nada mais distante da obra dos dois críticos materialistas do que a visão do marxismo reducionista de formas de base sendo refletidas na superestrutura. Trata-se de uma visão da realidade social como ela mesma formada e formadora das articulações dos produtos culturais. Dessa ótica, a forma existe tanto na arte quanto na sociedade, é uma noção reversível, que está tanto no mundo social quanto na arte. Este é o fundamento da comparação entre obras tão díspares quanto Minha Vida de Menina e Dom Casmurro.

Ao encontrar as semelhanças estruturais entre as duas obras e submeter com sucesso um livro “popular” à leitura cerrada reservada às obras consideradas grandes, Schwarz, sem alarde, desmonta alguns dos paradigmas mais resistentes da crítica literária. Um dos mitos mais caros da disciplina é que o mundo é caótico e o artista lhe dá forma. Ao encontrar forma no relato despretensioso da menina que não se diz artista, constata-se que a lógica da forma, e mesmo sua virtualidade estética, só podem vir da realidade prática, e é na interligação entre forma estética e forma social, dois aspectos da mesma estrutura, que reside o trabalho da crítica. A capacidade de captar essa estrutura prática, que dá feição à densidade da identidade social, configura a beleza que encanta gerações de leitores dessa vida de menina. Com esta constatação se comprova que a “beleza é deste mundo”, que não está necessariamente, como quer uma certa crítica literária, no inefável e no sublime, no âmbito da alta elaboração da tradição literária. Helena não escreve, como o fazem a maioria dos escritores canônicos, tendo em mente referências literárias. Não há dúvidas de que essa tradição potencializa a escrita e produz, como é o caso do livro em comparação, Dom Casmurro, grandes obras. Mas o fato de que Minha Vida de Menina permanece extensamente lido e relevante aponta o pedaço de exclusão social que acompanha, em uma sociedade desigual, o processo de escrita elaborada. Este processo, quando bem sucedido, dá conta de abarcar a complexidade do real mas demonstra também o preço de se viver em um mundo em que a literatura é reserva de classe e grande parte da população é excluída tanto de sua produção quanto de sua fruição.

Ainda a contrapelo do costume na crítica literária, o estudo de Schwarz, nesse aspecto continuando na mesma chave do materialismo cultural, não busca a significância atemporal tanto do obra de Machado quanto na de Helena, mas o que estas obras têm a nos dizer no presente específico em que vivemos. Schwarz nota que embora Machado sempre tenha sido considerado entre os grandes da literatura brasileira, as condições históricas pós-revolução militar de 1964 com a adesão das elites a seu sistema de repressão e exclusão social propiciam um entendimento mais claro da sua visão cáustica dessas elites:

Depois de 1964 a visão amena, ligada ao populismo e às suas promessas acabou. Daí a atualidade de Machado de Assis quando mostra que não é para acreditar em nada que as pessoas bem postas dizem, mesmo se as palavras forem sumamente elegantes. A visão machadiana das relações de classe, muito cruel e ácida, de repente ganhava outro peso. Machado de Assis não havia sido um escritor importante no pré-64. Foi este o ano que forneceu a ótica nova que permite dizer que o autor decisivo brasileiro –o que entendeu nossas relações de classe– é Machado de Assis e não José de Alencar ... O ceticismo machadiano só passou a ser entendido com acuidade histórica depois de 64. (Seqüencias 235)

No caso de Helena a ligação com o presente não se dá pela via da visão cáustica da “elite crápula”. Ambientada na Diamantina em plena crise da mineração, pós-abolição e antes da penetração do surto de industrialização, o livro mostra um momento em que há um relaxamento da separação social que a prosa e os episódios do livro captam com perfeição. A escrita de Helena rejeita as convenções beletristas, sua afetação e separação de classes: seu fundamento é o ponto de vista da igualdade e a expressão exata, no seu caso, “não é conquistada contra, mas a favor do uso comum” (Schwarz, Duas Meninas 130). O mesmo sentido desconvencionalizado anima os episódios da vida ainda possível em uma província afastada do ímpeto “modernizador” e segregacionista: seus irmão e os negros trocam de papéis e dividem o trabalho, os filhos de ex-escravos contratam um dos meninos Morley para lhes dar aulas, todos os meninos catam lenha, tanto pobres quanto remediados passam um dia juntos no campo. Essa visão idílica, possibilitada pela decadência econômica que afrouxa a exploração, ensina a ver a “estreiteza dos progressismos correntes, desprovidos de antenas para a melhora da sociedade” (Schwarz, Duas Meninas 73).

Por este lado se arma a ponte para a crítica da ideologia do presente. Em 1997, ano da publicação de Duas Meninas, já estamos em plena era de Plano Real e estabilização econômica. Reina no país a noção de que o progresso vale todos os preços, inclusive o da enorme fratura social que se agudiza nesses anos de modernização que conserva a iniqüidade social, diluída por pouco tempo na Diamantina de Helena Morley.

Vê-se assim a amplitude que um estudo de cultura feito da ótica materialista – a ótica definidora dos estudos culturais como disciplina – pode alcançar. Quando houver um lastro de estudos desse calibre não será mais necessário discutir, como fizemos neste livro, a formação dos estudos culturais. Eles estarão definitivamente implantados, prontos para levar como queria Williams, o melhor que se pode produzir intelectualmente a todos a quem isso possa interessar como forma de entender a vida.

Mas para isso, como sabemos, é preciso um outro mundo e uma outra forma de viver. 

 

Obras citadas
Antelo, Raúl. “Guerra Cultural”. Revista Cult 17 (Dezembro de 1998): 46-49.

Candido, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. .

---. Teresina Etc. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

---. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

---. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

Cevasco, Maria Elisa. Cultural Studies: A Brazilian Perspective. São Paulo: Humanitas, 1997.

---. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

Salles Gomes, Paulo Emilio. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

Schwarz, Roberto. Que Horas São? São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

---. Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

---. Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Williams, Raymond. “You’re a Marxist, aren’t you?”[ 1975]. Resources of Hope. Londres: Verso, 1989. 65-77.

 

Notas
1 Ao falar implantação não podemos esquecer que já há centros de estudos culturais atuantes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na própria Universidade Federal de Santa Catarina e na Universidade Federal de Pernambuco, para dar três entre outros exemplos.